Peixes que veneram polvos
- Gameverna
- Apr 27, 2020
- 5 min read
Uma análise a The Sinking City

Qualquer jogo ou filme/série etc, que retire inspiração das obras de H.P Lovecraft é sempre um guilty pleasure. Bom ou mau, há de ter sempre qualquer coisa positiva, pelo menos do que experimentei até agora. Ainda não conhecia os textos deste senhor quando me chegou às mãos uma cópia de Call of Cthulhu: Dark Corners of the Earth para o PC, um jogo de terror baseado na curta The Shadow over Innsmouth. Este contava com um dos ambientes mais opressivos que alguma vez vi e, principalmente na altura, era qualquer coisa de aterrador. Para não me alongar tenho só de mencionar as perseguições que metem qualquer humano tão stressado que até os pelos do cú batem palmas. Enfim, era um jogo e peras, mas o pior dele é que quando saímos da cidade inicial perdia muito da sua piada. Bem, em The Sinking City nunca saímos dela, e felizmente, consegue captar o mesmo nível de opressão que o Dark Corners of the Earth tinha. Antes de irmos mesmo ao que interessa, quero só referir que em 2018 sai também um jogo baseado nas obras de Lovecraft para PS4/X1/PC denominado simplesmente Call of Cthulhu. Foi um título que apesar dos seus problemas gostei bastante do que conseguiu fazer. Mais uma vez, a cidade onde este começava, conseguia ser super hostil.

Os dois mencionados jogos antes de The Sinking City fazem uma coisa muito bem em particular - traduzir o mundo estranho e macabro imaginado por Lovecraft para os video jogos. Felizmente este título não é diferente e consegue trazer mais uma vez esse mundo até nós com eficácia. Desde que começamos o jogo e somos apresentados a Oakmont, cidade onde a acção se desenrola, que sabemos não ser bem vindos. São poucos os NPCs que fazem sequer um esforço para se relacionar connosco, desenvolvendo a sensação de que estamos sozinhos e por nossa conta naquela cidade. O nosso nome é Charles Reed e somos um detective privado, ex veterano de guerra, que sofre de pesadelos horríveis e que se desloca a Oakmont, para desvendar desaparecimentos e tentar perceber a origem desses pesadelos. Oakmont sofreu umas cheias imensas que meteram parte da cidade debaixo de água, tanto que em algumas ruas usamos um barquinho como em veneza. Só com a diferença que este barco é rude e faz muito barulho, não é o romantismo da Gôndola, afinal isto é um jogo de terror. Nesta horror adventure, como somos detetives e, aparentemente em todos os jogos essa é automaticamente uma classe com super poderes de dedução sobrenaturais, passamos grande parte do tempo a analisar provas e tentar perceber o que aconteceu nas cenas do crime.

Sem dúvida que o melhor ponto neste jogo é a narrativa e os diálogos, sem eles seria um falhanço quase total. Felizmente, aliados ao incrível ambiente da cidade de Oakmont, são o que tornam este jogo numa experiência única e “agradável”. Claramente não é à conta das mecânicas de tiro que são no mínimo medievais. Não é que sejam más, ou que funcionem muito mal, mas parece que voltamos a 2002 quando apontamos e disparamos o revólver. É muito preso, nada orgânico e não evolui minimamente ao longo do jogo. Aparecem algumas armas novas sim, mas nem sequer existe qualquer necessidade de as usar. Para termos munições existe um sistema de crafting, claro, porque hoje em dia qualquer jogo que se preze tem de permitir craftar qualquer coisa. Para isso precisamos, claro, de material, pólvora, molas etc. Como este é um jogo tecnicamente impecável, se por acaso estiverem à rasca é fácil… quando entram num edifício e fazem loot ao mesmo, saiam, voltem a entrar e magia está lá tudo outra vez! É só um dos pequenos problemas técnicos que The Sinking City apresenta, mas há mais, muitos mais se estiverem atentos.

Lembram-se como falei bem da cidade? Sim, é de louvar, mas tem um problema… ou vários depende do ponto de vista. Esta é uma cidade que apesar de vários NPCs a passear na rua se sente despida. Não por falta de lixo por todo o lado ou de pessoas, mas porque não há qualquer sentido no que se passa. Mais do que uma vez, ao passar numa rua, vi o mesmo NPC a andar para trás e para a frente num espaço de dois metros. São vários os NPCs a terem diálogos em que não há voz, mas também podem estar a usar uma frequência marada, certo. Enfim à várias situações caricatas, mas também há algumas bem esgalhadas que tornam a experiência mais perturbadora, como por exemplo pessoas a suicidarem-se ou a chorar entes queridos que foram sinked. De notar mais uma vez que apesar dos problemas este é dos melhores settings de terror que há por aí, além de ser muito particular devido à obra em que se baseia.

Devido à nossa natureza detectívica (adicionem ao vosso dicionário), impõe-se ao jogador desvendar uma série de coisas. Mas por exemplo, armas do crime ou culpado de assassinato… easy basta o Charles chegar lá, olhar mais ou menos à volta e tá feito. Já coisas como por exemplo a morada de alguém… vai ser preciso input humano, é demasiado complexo. Estou no gozo mas a verdade é que isto até é porreiro. Normalmente só te dizem “olha tens de ir ao apartamento do Armando que fica ali em Lisboa, na rua 25 de Abril, entre o cruzamento com a Pacheco Nobre e a Guerra Junqueiro.”. Temos de abrir o mapa, olhar para as indicações que nos dão e decifrar onde temos de ir. Pode parecer pré-histórico mas isto é bom game design, nós não conhecemos a cidade como é que havíamos de saber? Para além disso não custa nada e, para quem usa mapas em 2020 em vez de GPS, é uma mecânica muito bem vinda. Também fora da possibilidade de dedução está tudo o que tenha a ver com registos da cidade. Claro, óbvio, não somos policiais, nem políticos, e chegámos à pouco tempo para meter a CCTV portuguesa (aka bisbilhotice) em prática. Quando precisamos de saber algo que se passou na cidade, ou sobre alguém, ou um registo criminal etc, temos de ir aos arquivos da polícia, ou da junta, ou da biblioteca. Por falar em biblioteca, a rapariga que lá trabalha é calorosa, tenho dito. Estas duas mecânicas manuais, que se equiparam a manetes para abrir vidros em carros de 2020, tornam a sensação de detectivismo mais serious business.

The Sinking City é um jogo com vários problemas sim, andar aos tiros é tão entusiasmante como no primeiro Alone in the Dark, e em termos técnicos no que toca a bugs e má optimização parece o Gothic 3. Ainda assim nem Alone in the Dark nem Gothic 3 são maus títulos, portanto não é isso que vai arruinar a experiência. Há aqui muito mais sumo para além do superficial, e este é um dos jogos onde temos de fazer esse esforço, passar por cima do superficial para conseguir apreciar tudo o resto. Tenho a certeza de que se tal for feito não será uma desilusão, principalmente se tiverem interesse no tema.
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